terça-feira, 31 de março de 2015

eu vou ser usado

Eu vou ser usado.
Esperança sairá correndo do meu abraço. O meu sonho tornará a tormento.
É ducha que não falha em pingar sobre meu crânio. Insistente, quer apenas penetrar a carranca, lavar todo o lodo dos meus pensamentos. Mas pouco ela pinga. Eu a abriria: alguém pode por favor me dar um pezinho?

Eu vou ser usado.
Minha imagem e semelhança retratarão em joguetes.
Sou o olhar do gato que viu fantasma, muito embora também eu habite sua asma.
Estou surdo, por isso os filmes perderam muito de sua graça. Sento-me, então, à cabeceira da cama, resumindo-me a uma leitura: é o livro da vida.
Trata-se dela batendo à minha porta. Não atendi, pois não a ouvi.
Estou surdo, lembra?

Eu vou ser usado.
Sou artífice em um mundo de inocência e ingenuidade:
Nas horas vagas, sou observador;
Nos jogos de amor, sou curinga;
Nos sonhos de paz, sou patriarca;
Na sobrevivência, sou escravo;
Na busca pela verdade, sou tolo;
Nos solavancos, sou guerreiro;
Na harmonia da vida, sou matemático;
Por fim, no tempo e no espaço, sou visgo - de colapsos.

Eu vou ser usado.
Para tudo na vida, existe um porquê. O que não sabemos é que nem sempre podemos entender.
Se eu for faca, espero poder um dia ser carne.
Se eu for lua, quem sabe um dia posso vir a ser sol.
Se eu sofrer demais, tomara deus que um dia eu sorria toda estrada.
Ora caberão as minhas lágrimas, num lago onde toda a dor tomou forma da mais pura beleza.
O meu penar por fim construirá um legado de humanidade, verdade e conjunta consciência, praticado o bem.
Os desejos primitivos não mais serão a força que guia a razão, porém a alma.
Mas antes disso, eu vou ser usado.

Eu vou ser usado.
Sou espelho para as tuas qualidades. Fazes de mim a perfeição que não poderás alcançar.
Desenhas, no quadro eu, tudo aquilo que te falta.
Com lápis sem grafite e canetas sem tinta.
Tens o dom de projetar em mim tudo aquilo que te habita.
Tu me olhas, eu, postado aqui, teu supremo espelho, e te arrumas pro teu cotidiano festival.
Eu não tenho espelho. Da tua ajuda, preciso.
Eu não tenho espelho: eu sou o espelho.
Tu me vês, então, diz a mim quem sou.

Eu vou ser usado.
Para todo fim, recomeço.
Até que a morte nos separe, agradeço.
Obrigado, por me dar de comer: arte de não ser amado.