Fiquei sabendo que iria ao planeta Terra, e que teria uma
missão. Avisado sobre os contrastes que abalam a estrutura da existência,
ensinado a estender a mão ao próximo, lembrado de que voltaria para mais uma
vez desembocar numa outra dimensão qualquer. E então, a luz.
E logo, o escuro.
Senti mãos, ouvi vozes, eu crescia. Cresci.
Nasci.
Era-me tudo tão estranho!
Fui amamentado, ao seio da mãe, depois à mamadeira, até que
aprendi a segurar copos.
Jamais usei bico, o que talvez justifique minha ansiosa
fixação oral.
Aprendi a beber. Bebi. Até que esqueci como se mama.
Aprendi a comer. Apareceram dentinhos, que foram caindo com
o tempo.
O que teria sido aquilo?
O visgo de um vislumbre melancólico, talvez, pelo fato de
ter nascido sozinho.
Não tinha amigos, apenas árvores em que eu trepava.
Ficava horas de galho em galho, coletava frutinhos pra
experiências que nunca concluí.
Observava o curso das formigas.
Sentia-me só.
Sempre me senti só. Sozinho. Solitário.
O mundo das idéias era tão grande pra se estar apenas por si
mesmo!
Já praticava poesia, só não havia ainda a teoria. E pra quê?
Não havia qualquer coisa de errado em estar sozinho, salvo por
um fato.
O timbre.
A voz aguda.
O olhar profundo. Querido. Também curioso.
Feminino.
Do meu peito, despontou uma faísca chamada saudade. Dentro
daquele mundo ideal em que morava o sonho, aquele planetinha gigantesco que me
permitia imaginar qualquer coisa. Nunca precisei da Xuxa pra me ensinar a
imaginar. Era, por si só, a própria imaginação quem me imaginava, e me
desenhava num espelho que eu pudesse pensar, logo, refletir. Mas faltava algo,
e tão logo descobri esse algo.
Alguém.
Faltava alguém ali comigo. Uma pessoa que detivesse um
timbre angelical, poder supremo de contrastar com a minha voz e com as minhas
atitudes. A voz aguda que em tom ameno complementaria a minha, outrora
explosiva.
Uma menina.
Mas eu cresci. Conheci. Vislumbrei. Entristeci-me e fugi do
meu reflexo apenas para poder me amar novamente.
Foi ficando tão difícil. A simplicidade que eu tinha a
oferecer nunca era o bastante. A chave para o meu planetinha gigantesco ficava
ali, debaixo do nariz, tão óbvia e sublime que não havia pureza capaz de a
encontrar.
Eu cresci.
Desconheci.
Tentei esquecer. Poucas vezes consegui.
E me alegrei novamente. Jamais com a intensidade anterior,
mas me alegrei.
Alegraram-me.
Ou, talvez, alegrei o reflexo de outrem em mim.
Nunca soube.
Nunca saberei.
Mas cresci.
A menina, também.
Os sonhos continuaram os mesmos. Todos eles em seu devido
lugar, ideais, puros.
Até que voltou a sensação vivida na infância. Aquela
descoberta, aquele desconforto, aquela solidão, aquela tristeza. Voltou, sim,
sem que eu precisasse tocar meu mamilo. Tentei distrair meus sentidos, afagar a
mim mesmo com o toque, com a sutileza de um vôo até a realidade. Tentei até
tocar meu mamilo, em desafio, rebeldia. De nada adiantou.
Procurei a cura à medida que o tempo se arrastava.
Conheci os males do mundo e suas máscaras.
Algumas caíam, outras, capturei e uso até hoje. Poucas por
vontade própria.
Saboreei o que pensara ter sido a menina.
Tantas vezes, tantas amarguras.
Suas máscaras caíam e elas não eram bonitas nuas.
Não tão bonitas quanto a lua.
A mulher. Sim. Não era mais menina, pois ela crescera tanto
quanto eu.
Procurei a mulher.
Mãos, olhos, bocas, gestos, seios, pernas, glúteos, vaginas,
sexos, chás, cafés, chocolates e dejetos. Provei de tudo um pouco. Provei de
todas alguns, de algumas, tudo. Mas a chave continuava ali, até que percebi
haver algo de errado.
Errei quando pensei que quiseram sequer tocar a chave.
Meu mundo caiu.
A mulher.
Não podia ser. Pudera eu cometer tamanha gafe às raízes do
destino?
Enlouqueci. Pirei na batatinha, viajei na maionese.
Fiquei completamente louco.
Não sabia mais no que acreditar.
Foi a esperança que me salvou.
Sim, a espera, despida de ansiedade.
Olhei para dentro de mim, o planetinha ainda era gigantesco,
e os sonhos ainda estavam todos ali. Aquela velha sensação também me
acompanhava, porém, não mais com tanta aflição, aprendi a domá-la com meu
próprio reflexo, aliado à luminosidade das estrelas que escolhi seguir.
Percebi que a confusão seria inerente do meu ser até que eu
deixasse de ser.
Quando?
Apenas quando morrer.
Mas não o sofrimento.
Este não podia continuar. Tinha de parar.
Lembrei dela novamente. Seu timbre angelical que rompia a
escuridão, acolhia-me em suas notas como uma harpa acolhe a beleza. Sua voz
aguda contornava as explosões do meu pensamento com canetinhas de cores
vívidas, ora quentes, ora frias, sempre presentes.
Ela, a mulher. Que voltou a ser menina, tornando a memória
de seu crescimento uma máscara, daquelas necessárias e que não se pode
controlar, ou evitar.
A menina.
Lembrei dela e ela se lembrou de mim. Sabia que a hora havia
chegado, que nossos sonhos não se cruzariam, nem se chocariam.
Enquanto se aproximavam, fundiram-se. Fecundaram-se. Vida.
Mais vida. Outra vida.
Novamente, vida.
Ela olhou para a chave.
Sorriu.
Atravessou ligeira a fechadura.
E a porta ficou do lado de fora.
Com suas canetinhas singelas, vai colorindo o planetinha
gigantesco ideal.
Usando as mãos, ela pinta com delicadeza meu mamilo, faz
cócegas, eu rio, sorrio.
Sua voz de anjo sussurra o carinho que precede toda a
existência natural que ela encontrou depois da fechadura.
(Por sinal, eu até então sequer sabia dessa fechadura!)
E a sua missão parece um pouco com a minha.